Lembranças da troika de uma Sintrense.

    Sendo um evento muito recente na História de Portugal, as marcas da crise da troika não são visíveis por fotografias em Sintra. A verdade é que isto tratou-se de um acontecimento que atingiu todo o país, com o desemprego a subir e as condições de vida dos Portugueses a caírem. É precisamente nesse sentido que decidi recorrer aos testemunhos das pessoas que aqui residem e que vivenciaram a crise da troika.


Lucília Oliveira 

Professora de História

A crise foi: 

"Desastrada e terrivelmente desastrosa."

  Lucília Oliveira tem 57 anos, fez licenciatura e metrado no curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sendo que o concluiria em 1986. Atualmente leciona História e Ciência Política na Escola Secundária Leal da Câmara em Rio de Mouro, Sintra. É também uma residente no concelho de Sintra, pelo que se encontra apta para nos dar a conhecer as condições de vida que os munícipes vivenciaram durante esta época díficil na história de Portugal.

      A professora Lucília irá-nos dar a contar como foi viver durante a crise enquanto funcionária pública, quais os desafios que enfrentou, quais os efeitos que se fizeram repercurtir sobre Sintra e também irá partilhar os seus pensamentos gerais em relação à gestão dos Governos associados a esta crise.

     Seguem aqui alguns segmentos da entrevista por escrito, estando eles encontram acompanhados pelo áudio da conversa que tivémos. Bom proveito e espero que obtenham tanta clareza quanto eu com as explicações da minha professora.


| Q1: Não se poderia ter evitado a crise mediante uma regulação da expansão de crédito que se registou no começo do século?

| L.O: Provavelmente não. Se calhar deveriam ter sido mais pró-ativos e deveriam ter mais cuidado com as concessões de créditos... até porque em Portugal sempre houve um problema de baixos salários, de as pessoas terem que recorrer a crédito para poderem consumir, precisamente por os salários serem muito baixos e os bancos acharam que era uma boa oportunidade de tirarem lucros fazendo esses empréstimos, portanto é evidente que as coisas acabaram por descambar. Mas Portugal sozinho depois ainda acabaria, se calhar, por ficar mal visto por estar a alterar as políticas das grandes economias, que estavam todas a atuar no mesmo sentido. Portanto não sei até que ponto é que Portugal poderia feito algo diferente daquilo que fez.


| Q2: O que achou do desempenho de José Sócrates enquanto primeiro-ministro, considera que ele revelou imprudência ao evitar pedir o resgate financeiro para não manchar a imagem de Portugal?

| L.O: Lembro-me que ele teve uma afirmação muito interessante: "Vivia-se a crédito". Que resolviam-se os problemas pedindo dinheiro emprestado, porque esse dinheiro é que ia pagar as dívidas anteriores, portanto foi assim... as dívidas não eram para serem pagas, eram para se ir pagando. Era mais ou menos nesse sentido.

   É evidente que sabemos que Portugal está a entrar em declíneo económico nesta altura, há sempre muita pressão da EU para se ficar bem na fotografia. É uma época em que Portugal tem, em 2006, se não me falha a memória, a presidência da UE - à semelhança do que aconteceu agora há pouco tempo -, [...] Sócrates queria muito que a presidência portuguesa ficasse ligada a um momento marcante da EU, neste caso era o Tratado de Lisboa, Sócrates estava um bocadinho vaidoso em relação ao que daí podia advir e de ter sido sob sua presidência que se tinha tomado esse grande passo na construção europeia. Portanto, possivelmente, acabou por não atuar de maneira a manchar a imagem do país dentro da EU - é evidente que isso depois - é evidente que isto depois foi a pior emenda porque depois isso aconteceu a seguir -, mas se calhar isso também teve alguma importância, digo eu.

  [...] Portanto se calhar ele foi imprudente, não pede resgate financeiro, não mancha a imagem de Portugal porque provavelmente queria que a imagem de Portugal ficasse ligada ao Tratado de Lisboa e às coisas positivas que daí poderiam advir [...]. Temos também que ver as questões do ponto de vista do ego, da própria pessoa e daquilo que leva as pessoas a atuar ou deixar de atuar de uma certa maneira. Conhecendo nós a figura de Sócrates como conhecemos, do ex-primeiro ministro, que é uma pessoa... vaidosa, se calhar é nesse sentido que o senhor tomou essa atitude. 


| Q3: Portugal ainda lida com um grave problema de emigração, sendo que o nosso saldo migratório durante a crise foi sempre negativo. Na sua opinião, o que acha que o nosso país tem que fazer para reter os Portugueses?

| L.O: Aquilo que se tem de fazer é desenvolver boas políticas públicas de natalidade e orientadas para a família... que é coisa que nós não temos. Portanto, não pode haver desregulação laboral, não pode haver os horários desregulamentados, os salários, as horas extraordinárias que são feitas e que não são pagas. Tudo isso são coisa que não ajudam. Não é assim tão difícil. Basta pôr os olhos dos países do norte da Europa que não têm problemas da taxa de fertilidade. O quê que eles fizeram que nós não fizemos? É preciso de dinheiro? É, mas o sr. Primeiro-ministro agora não fala da "bazuca"? Então se calhar seria melhor equacionar as questões complicadas da sociedade portuguesa e utilizar esse dinheiro para fomentar as políticas de natalidade e as condições de vida, porque [...] assim talvez [os portugueses] não se vão embora. 

    Não é com salários mínimos ou médios de 1000€ [...]. É assim, uma pessoa que ganhe, por exemplo, ilíquidos, 2000€... traz pouco mais de 1000€ para casa. Traz 1200€/1300€. O resto é impostos. Portanto, tem que se ter muita atenção ao salário médio e depois às condições de vida e de trabalho.

  Há uma coisa que é importante, o mundo empresarial tem que se consciencializar que tem uma responsabilidade social também, não é só encher os bolsos. Não pode ser só ter como objetivo o lucro. São poucas as empresas que têm um dever de responsabilidade social. [...] E quando nós passamos para uma situação mais específica, por exemplo, o trabalho feminino... muita coisa se passa no mundo empresarial em que a legislação, a mais banal é atropelada. E depois queremos aumentar a taxa de fertilidade? Queremos que o país não envelheça? Queremos que os jovens tenham mais filhos e que não se vão embora, que fiquem em Portugal? Então se queremos que isso aconteça então algo tem que mudar.


| Q4: Enquanto Sintrense, viu as medidas de austeridade a tomarem efeitos sobre a vida e os negócios locais? A Escola Secundária Leal da Câmara, por exemplo, viu-se afetada por cortes nos apoios do Estado?

| L.O: Isto foi muito complicado do ponto de vista da escola porque esteve praticamente parada a entrada de novos funcionários nas escolas, portanto estamos a falar dos auxiliares, que fazem muita falta. Depois, as carreiras foram congeladas durante mais de 10 anos. Há professores que ainda não viram devolvidos os tais 2 anos e 9 meses. [...] As pessoas não progrediram na carreira, o tempo passava e não se mudava de escalão, não se sobe de salário, não se faz nada e aumentam-se os horários de trabalho, portanto os horários dos professores passaram a ser contabilizados ao minuto... o que veio dar ali umas confusões enormes.

  É evidente que isto depois acaba por ter um certo impacto negativo na educação porque com profissionais desmotivados, desvalorizados, as coisas não vão longe. [...] Na escola nós sentimos isso. Havia menos professores, turmas maiores, aumento dos horários, carreiras congeladas, portanto foi muito complicado gerir toda esta situação.

  Em relação à primeira parte da tua pergunta, sobre vida e os negócios... sim. Porquê? Vamos lá ver. Porque aumentou o desemprego, as pessoas começaram a não conseguir consumir aquilo que consumiam e portanto houve muitos negócios que deixaram de estar tão prósperos, porque as pessoas não consomem... olha é aquele ciclo que conhecemos das crises normais do capitalismo, portanto se não tens dinheiro, se há desemprego, não consomes. Se não consomes, as empresas que fabricam não conseguem revitalizar-se, portanto vão à falência, mais falências, mais desempregos, menor consumos. Enfim, temos uma crise cíclica e depois é muito difícil sair disto. Portanto a austeridade neste caso foi negativa porque em vez de melhorar a situação, piorava a situação.

   Pessoas não tinham o que comer... houve pessoas que tiveram que entregar as casas ao banco porque deixaram de poder pagar as casas e voltaram para casa dos pais [...], mas atenção não estou a falar de jovens de 20, 30 anos. Não, estou a falar de pessoas com 30 e 40 anos, com filhos, que deixaram de poder cumprir com as suas obrigações, tiveram que pegar nos filhos e voltar para casas dos pais, porque senão iam viver debaixo da ponte. Portanto foram situações muito complicadas e depois é evidente [...] essas pessoas foram-se embora. Foram tentar uma nova oportunidade e melhorar as suas condições de vida. Isso sentiu-se em todas as regiões do país, Sintra não foi exceção.


| Q5: Na sua opinião, acredita que as agências de notação financeira contribuíram muito para a deterioração económica de Portugal ou acha que algumas figuras políticas utilizaram os ratings das agências para evitar responsabilidade por uma pobre gestão da crise?

| L.O: Quando se fala as agências, as agências de notação financeira... mas quem é que são estas instituições? Vivem de quê? Há uma série delas que são pagas pelos Estados para avaliarem as condições financeiras dos Estados, portanto há uma falta de transparência tão grande no meio deste processo todo. Será que as coisas são feitas de forma transparente? Todos estes processos, ditos financeiros, não têm objetivos escondidos? Portanto estas instituições financeiras às vezes geram muito mais dúvidas do que certezas.

     Realmente estes tais ratings negativos também acabam por ser convenientes porque quanto mais negativo for o rating, mais caro custa tu comprares dinheiro. Quando fores pedir dinheiro, tens que pagar mais juros. Só te emprestam se pagares mais. [...} Portanto também não sabemos até que ponto é que estas agências estão a beneficiar os tais grupos financeiros, que vivem do empréstimo, porque dizendo "Olhem! Atenção! Vocês não vão emprestar dinheiro aqueles porque eles não têm dinheiro para pagar e portanto a economia é lixo, não tem credibilidade nenhuma! Se vocês lhes quiserem emprestar dinheiro reguem-lhes nos juros!"

    [...] Os ratings também contribuíram para agravar ainda mais a situação financeira do país, precisamente porque estavam a semear a desconfiança e a fazer com que o país se visse obrigado a financiar-se com juros muito elevados.


| Q6: Que avaliação faz da gestão do chamado 'Governo da troika' de Pedro Passos Coelho?

| L.O: Ora... que avaliação é que eu faço da gestão do Governo da Troika? Pois eu acho que foi um bocadinho desastrosa. Olha isto faz-me lembrar da cura de determinadas doenças no séc. XVI-XVIII. "O doente já está doente e então o que é que se lhe faz para aliviar a doença? Faz-se uma sangria.", o doente não morre do mal, morre da cura. O Governo de Passos Coelho é um bocado assim, o país já estava muito doente, havia medidas de austeridade que eram pedidas pela EU e mesmo o FMI, mas depois acabava precisamente com uma determinada posição política neoliberal em que se discute e se põe à venda os chamados "assets", aquilo que é considerado as mais-valias do país, a determinados interesses privados.

   Por exemplo, a venda da EDP, da rede energética nacional, aos chineses foi organizadas nessa altura. As coisas foram vendidas quase que ao desbarato. Mas falava-se em investimento público: "Isto é investimento público! Isto é investimento estrangeiro! Nós precisávamos muito de investimento estrangeiro!"

   Realmente eles vieram investir. Investiram. Compraram. [...] O quê que estamos a vender? Temos que ter em atenção o que estamos a vender. Está-se a vender coisas muito importantes das quais todos nós dependemos muito, que neste caso é o fornecimento de energia elétrica nacional. Nós não controlamos nada. Portanto setores de produção que são importantes para o País e para as pessoas estão nas mãos de uma potência estrangeira neste caso, porque a 'Three Gorges' é uma empresa chinesa, com forte comparticipação do Estado Chinês.

   Portanto eles [o Governo], [...] ao quererem aliviar o peso do Estado, acabaram por se ver livres de fontes de riqueza do País.


| Q7: Como sentiu os efeitos da crise enquanto docente e funcionária pública?

| L.O: Estou-me a lembrar da questão dos congelamentos da carreira, do aumento das turmas, a redução do número de professores nas escolas. Ficámos sem subsídio de férias num ano e sem subsídio de Natal.

  Nós já sabemos que os funcionários públicos, precisamente por serem funcionários públicos e sua função é servir o público [...], é evidente que pesam. As pessoas têm ideia de que "isto é um peso morto, paga-se muito, já são muitos funcionários e muita riqueza do país é canalizada para a função pública", mas é assim, queremos ir aos hospitais ou centros de saúde... temos os serviços. Queremos os meninos nas escolas... temos os serviços.

  Ah! Outra coisa, em relação a estes serviços, por exemplo, muitos ficaram vazios porque as pessoas que se foram reformando, que foram saindo da função pública, não foram sendo substituídos. Ficámos com serviços completamente esvaziados. Estou-me a lembrar do IMT, portanto renovações das cartas de condução... aquilo foi uma desgraça, não se conseguia fazer nada porque não havia funcionários suficientes para fazer a renovação. Havia muitos serviços do Estado que não tinham funcionários. Não havia.

    A questão do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), por exemplo, hoje em dia, eles queixam-se da falta de inspetores e de ativos, tanto que só conseguem assegurar os serviços se fizerem horas extraordinárias, ou seja, horas a mais ao seu período de trabalho. É a mesma coisa na Saúde [...].

  Se é necessário trabalhar, fazer horas extraordinárias, então é porque não há funcionários que cheguem e quando eles fazem greves às horas extraordinárias, instala-se o caos nos serviços... e isto começa nesta altura precisamente, com a troika e com o afunilar dos funcionários públicos. Há um reduzir tão grande dos funcionários públicos que muitos serviços ficaram à beira da rotura. 


| Q8: Considera a crise uma momento transformador na História de Portugal? Como descreveria o impacto da troika em Portugal em três palavras?

| L.O: Não lhe dou assim tanta importância como isso. É um impacto negativo, claro que é. Não transformador, porque não transformou nada. Nós já passámos por muitas crises económicas, damos sempre a volta por cima, somos resilientes, teimosos e somos sobreviventes. 

   O país nunca foi rico... quer dizer, o país teve riqueza, os Portugueses não. Sempre. Mas damos ou tentamos sempre dar a volta por cima.

    Ora bem... Três palavras para descrever a troika... Desastrada e terrivelmente desastrosa.


Joana Matos
Concurso EUStory 2021 - XIV Edição

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