Opinião de um especialista.


    O que aconteceu em 2008 é um assunto muito complexo. Envolve o entendimento de princípios económicos que para mim são muito enigmáticos. Neste sentido, decidi contactar um economista português que se internacionalizou pouco tempo depois do começo da crise da troika. Procurei adquirir conhecimento acerca do que aconteceu em 2008, a gestão da crise em Portugal, assim como também uma questão de caráter mais pessoal, nomeadamente, o motivo da sua emigração para os EUA. 


Miguel Faria e Castro Economista

A crise foi: 

"Dura. Necessária. Importante."

  Miguel Faria e Castro tem 32 anos, é doutorado em Economia pela New York University, com mestrado e licenciatura também em Economia pela Universidade Nova de Lisboa. 

    Atualmente, é economista e trabalha divisão de estudos da Reserva Federal de St. Louis, um dos 12 braços do banco central norte-americano. A sua investigação foca-se em assuntos relacionados com política orçamental e monetária, assim como regulação e crises financeiras.

   Era o mais jovem economista português da Federal Reserve em 2018, segundo o jornal Expresso. Quando a crise financeira despertou em 2008, com a falência do banco Lehman Brothers, o economista tinha 19 anos e estava no início do seu curso de Economia na Universidade Nova. 

  Seguem aqui alguns segmentos da entrevista por escrito, que se encontram acompanhadas pelo áudio da conversa que tivémos. Bom proveito e espero que obtenham tanta clareza quanto eu com as explicações do Sr. Castro. 


| Q1: Acredita que as agências de notação financeira contribuíram para a deterioração económica de Portugal? Tais agências devem ser alvo de regulação por entidades internacionais?

| M.F.C: Sim e não. [...] Objetivamente contribuíram, mas na minha visão [...], elas estavam simplesmente a desempenhar a função que é suposto desempenharem - que é avaliar a qualidade de dívida das pessoas que compram e detém essa dívida e avaliar a probabilidade, mais baixa ou mais alta, do credor entrar em incumprimento. 

   [...] Agora, sim, contribuíram na medida em que, como os economistas sabem, há situações que resultam naquilo que são chamadas "falhas de coordenação", em que, porque alguém diz que a dívida é má, a dívida torna-se má. E houve um pouco disto... houve um bocado desta falha de coordenação, ou equilíbrios múltiplos, a acontecer durante a crise financeira e, definitivamente, a situação financeira, a situação das Finanças Públicas de Portugal estava-se a deteriorar, principalmente a partir de 2008, 2009, e as agências de rating atualizaram os seus ratings para refletir isso, mas isso levou a que a situação das Finanças Públicas piorassem ainda mais. Portanto, neste aspeto, contribuíram objetivamente, mas por outro lado estavam elas estavam apenas a fazer aquilo que era suposto fazerem.

   Em relação a regulação por entidades internacionais, eu sou um bocado cético em relação a isso, porque... [...] eles estavam apenas a fazer aquilo que era suposto fazerem. E penso que tentar regulá-las muito pode ser prejudicial, porque acaba por criar incentivos diferentes, podem desviar as agências de rating da missão para qual elas existem. Se tentamos regular muito... qualquer regulação que temos a impor vai fazer com que elas... vai criar distorções na informação que elas dão aos credores sobre a qualidade da dívida dos países que estão a pedir emprestado. E então, isso que quer dizer que elas não vão estar a desempenhar o papel para qual foram criadas da melhor forma possível. E portanto, se eu fosse um credor e as agências de rating são extremamente reguladas, então, se calhar, eu deixo de acreditar no que elas dizem, porque eu sei que aquilo que elas estão a dizer está a ser distorcido por outros tipos de regulação. Ou seja, elas perdem um bocado o seu propósito, não é?


| Q2: Portugal integra cada vez mais jovens no Ensino e vê-se um aumento no número de matriculados no Ensino Superior, porém, não se vê um crescimento económico correspondente. Como tal, muitos portugueses acabam por emigrar. Se não for demasiado ousado da minha parte, porque decidiu emigrar?

| M.F.C: Não, não é ousado nada! É assim, eu decidi emigrar porque na altura estava a estudar economia na Universidade Nova, estava a fazer um Mestrado em Economia, e decidi continuar a estudar. E na altura, falando com os meus orientadores e com os meus lá na Nova, toda gente me aconselhou: "Olha, se queres continuar a estudar devias ir fazer um doutoramento e, se vais fazer um doutoramento, a menos que tenhas razões pessoais muito fortes que te prendam a Portugal... sei lá, ter mulher e filhos em Portugal, uma coisa assim do género... então aí tentaria ir para uma universidade que fosse o melhor possível, e as melhores universidades, melhores departamentos de economia do mundo tendem a estar nos Estados Unidos ou no Reino Unido". E, portanto, candidatei-me a uma série de programas nesses países, entrei em alguns, fui rejeitado noutros. Depois, dentro daqueles que me aceitaram, escolhi aquele que se adaptava melhor aos meus interesses de investigação e acabei por vir para os Estados Unidos, para a Universidade de Nova Iorque.

   E pronto... e depois de ter terminado o doutoramento, também surgiu uma oportunidade profissional boa aqui nos Estados Unidos e decidi ficar. Mas, portanto, isso para dizer que... na minha geração, tal como disse no início, eu tinha 19 anos quando começou a crise financeira e, portanto, muitas pessoas da minha geração, muitos antigos colegas meus de faculdade emigraram. De facto, nessa altura, na altura que acabaram o curso não havia grandes oportunidades porque a economia portuguesa estava a entrar numa recessão muito pesada. Mas, eu penso que sou um caso um pouco diferente destes porque eu penso que teria emigrado independentemente da conjuntura económica em Portugal.


| Q3: Como é que a crise dos mercados financeiros se exportou para a Europa e, eventualmente, para Portugal, provocando a chamada da troika em 2011?

| M.F.C: Essa é uma pergunta muito pesada, já se escreveu muito sobre isso a tentar explicar porque que isso aconteceu, mas penso que a causa mais próxima foi através do setor bancário global que, pronto... tivemos uma crise financeira nos Estados Unidos, uma crise que foi tanto no mercado da habitação como no mercado para ativos, para títulos relacionados com empréstimo à habitação. Isso gerou uma grande contração de liquidez por parte do sistema financeiro norte-americano, mas não apenas no sistema norte-americano, porque havia muitos bancos grandes europeus que estavam ativamente envolvidos no mercado de empréstimo à habitação nos Estados Unidos. Bancos francês, bancos ingleses, bancos alemães. E esses eram, também, frequentemente os bancos que estavam mais ativos em termos de compra de dívida pública na Zona Euro. 

   Portanto, aquilo que assistimos, vários bancos europeus começam a ter problemas de liquidez por causa das suas atividades nos Estados Unidos e, portanto, começam a tentar desalavancar e a tentar reduzir o tamanho do seu portfólio de ativos. Isso incluiu, naturalmente, reduzir as suas compras e reduzir os seus holdings de títulos de dívida pública.

   Se vão reduzir o tamanho do seu portfólio de dívida pública, por onde é que começam a reduzir? Começam a reduzir, em princípio, pela dívida que é menos segura e mais arriscada. Penso que isso foi a causa próxima que levou a que os países da periferia, Portugal, Espanha, Irlanda, Grécia e Itália, que eram os países que, em termos de finanças públicas, não estavam tão estáveis como o resto da Europa, esses países de repente, os mercados nacionais de capital que os costumavam financiar fecham-se, e isso despoletou a crise de dívida pública na Europa.


| Q4: Não se poderia ter evitado a crise mediante uma regulação da expansão de crédito que se registou no começo do século? 

| M.F.C: Isto é uma questão ainda mais complicada do que a anterior, "Quais é que são as raízes da crise financeira nos Estados Unidos, 2008" [...] não vejo que haja ainda um grande consenso entre economistas sobre quais é que são as causas mais importante da crise financeira dos Estados Unidos. Houve várias coisas que contribuíram para isto, e uma delas é aquilo que referiu, houve uma grande expansão de crédito naquilo que são chamados "segmento subprime", que eram basicamente pessoas que não eram tradicionalmente capazes de obter grandes empréstimos de habitação, mas que como havia uma grande tendência de apreciação do preço das casas em determinadas partes dos Estados Unidos, nomeadamente na Flórida e no Sudoeste, essas pessoas, de repente, começam a... como as casas valem muito e elas querem comprar aquela casa, também os bancos sentem-se... os bancos e os emprestadores de forma geral, sentem-se seguros a conceder um empréstimo, porque sabem que se deixam de pagar, eles ficam com a casa, a casa é o colateral, e, portanto, não perdem assim tanto. Agora, o que ninguém estava a espera é que os preços das casas caíssem tanto e tão depressa.

   Isso, naturalmente, foi um fator importante, mas a questão que eu acho que é mais interessante e um pouco mais profunda é: "Por que é que houve essa expansão tão grande de crédito em primeiro lugar?". E há vários economistas que já escreveram bastante sobre o assunto e, aliás, há que diga que tem muito a ver com a crise financeira asiática no final dos anos 90, em que basicamente no final dos anos 90 houve várias bolhas especulativas em países como Taiwan, Coreia do Sul, etc., que, entretanto, rebentaram e levaram a que o FMI entrasse nesses países e criasse muitas restrições a investimentos por parte das pessoas destes países para tentar evitar uma nova crise deste gênero. E há quem diga que, de repente, há este excesso de capital, principalmente em países do Leste Asiático, em que as pessoas não podem investir lá por causa de regras que o FMI impôs para tentar evitar uma nova crise. Então decidem investir este capital onde? Decidem investi-lo nos Estados Unidos. E, de facto, aquilo que se verificou no final dos anos 90 e no início dos anos 2000, principalmente a seguir à crise asiática, grandes fluxos de capital para os Estados Unidos, principalmente vindos da Ásia [...] e muito dele acabou por ser investido em títulos que estavam associados a empréstimos imobiliários. Portanto, de certa forma havia demasiado capital e esse capital tem de ir para algum lado, e juntaram-se duas condições que eram os preços das casas a apreciar, portanto, muitos emprestadores sentiam-se seguros a emprestar este dinheiro, e por hora era fácil arranjar este dinheiro, porque este dinheiro estava a vir da Ásia.

   Portanto, foi um bocado uma combinação de destes dois fatores. E, naturalmente, como a crise resultou mais ou menos da combinação destes dois fatores, se cortarmos num deles, em princípio, a crise não teria acontecido.


| Q5: Na sua opinião, considera que Portugal teve tempo para se preparar para a crise financeira, mas demonstrou demasiada confiança na arquitetura da Zona Euro?

| M.F.C: É uma boa pergunta, penso que não é controverso dizer que houve algum risco moral na medida que toda gente, apesar de nunca ter sido explícito, toda gente assumia que o Banco Central Europeu era um "lender of last resort", era um emprestador de última instância, que é - o BCE tinha o interesse em evitar o colapso do euro, da moeda única, caso alguma coisa corresse mal a nível de dívida pública, etc., o BCE entraria e resolveria a situação. E, aliás, acho que um dos grandes problemas da crise do euro foi que muita gente assumiu que isso era verdade, que isso era implícito nos tratados, mas, de facto, não era explícito, e, de facto, a atitude inicial do BCE face à crise foi: "Isto não é um problema nosso". 

   [...] Esta falta de clarificação foi muito prejudicial no início da crise, principalmente antes do Mario Draghi se tornar presidente do BCE, e aí, penso, que o BCE mudou radicalmente de atitude e, de facto, acho que isto foi muito importante para conseguir "resolver a crise".

    E pronto, de facto, como muita gente assumia, implicitamente, que o BCE seria um "lender of last resort", penso que não houve grandes esforços por parte de nenhum estado-membro [...] para pensar seriamente em mecanismo de resolução de crise. "O quê que aconteceria se houvesse uma crise de dívida pública na zona euro?" Porque penso que toda gente achava que sendo o BCE um "lender of last resort" tais crises seriam impossíveis.

   Portanto, neste aspeto, sim, houve alguma falha em planear, mas é assim, eu acho sempre que isto, "vivendo e aprendendo", não é? Se há coisas que simplesmente ninguém achava possíveis, mas acontecem. E aí, então, repensa-se toda a arquitetura institucional e refaz-se as instituições para tentar evitar que isto volte a acontecer.


| Q6: Considera que o ministro demonstrou imprudência ao evitar pedir o resgate financeiro para não manchar a imagem de Portugal?

| M.F.C: [...] Se olhar para aquilo que Portugal estava a fazer, essencialmente o que se passou foi, em 2008, começa a crise financeira nos Estados Unidos e isso gera uma grande recessão nos Estados Unidos. E essa recessão começa-se lentamente a alastrar-se pela Europa aí por volta de 2009, 2010. Mas ainda não há crise na Europa. E então, aquilo que, na altura, o governo português, o primeiro-ministro José Sócrates, decidiu fazer foi: "A economia está prestes a entrar numa recessão, portanto o governo português ainda consegue se financiar nos mercados, portanto aquilo que vamos fazer é simplesmente adotar uma postura orçamental cíclica. A economia está a entrar na recessão, vamos tentar é gastar. O governo vai gastar para tentar sair da recessão." E isso, em princípio, é de certa forma... na altura houve muita discussão, porque Portugal já tinha a dívida pública elevada, portanto, obviamente o governo não pode tão facilmente gastar dinheiro como por exemplo o governo britânico, o governo americano. Mas em princípio, até aí tudo bem, ele estava a fazer aquilo que de um ponto de vista keynesiano se deve fazer, quando entra numa recessão, o governo gasta mais.

   Agora, o problema começou em finais de 2010, inícios de 2011, quando, de facto, começam a surgir indícios de que haverá uma crise de dívida pública na zona euro e o governo, nós que já começamos com níveis de dívida pública elevados, para gastar teve, obviamente, de aumentar esses níveis de dívida pública. E de repente, finais de 2010, inícios de 2011, começa-se a perceber que se calhar o governo nem consegue ter acesso a essa dívida pública se precisasse de gastar, os mercados internacionais começam a fechar, e vê-se obrigado a chamar a troika.

   [...] Acho sempre que é muito fácil falar depois do facto, "ex post", e não tendo a certeza de que haveria uma crise da dívida pública, [...], em princípio, de um ponto de vista muito macro, não tenho assim grande coisa a criticar.

   E, de facto, aquilo que se passou foi, a finais de 2011, percebe-se que se está a iniciar uma crise da dívida pública na zona euro e é o próprio governo do José Sócrates que chama a troika, [...] neste aspeto, eu acho que eles fizeram o que tinham de fazer.


| Q7: Que avaliação da gestão do chamado 'Governo da troika' de Pedro Passos Coelho? Por exemplo, considera que a vontade expressa pelo antigo primeiro-ministro, de ir além do programa da troika, de reforçar as medidas de austeridade, um mal necessário para pôr fim ao modelo de endividamento que assombra Portugal?

| M.F.C: Uma vez mais, é muito fácil julgar as coisas depois do facto, mas na altura, claramente Portugal estava envolvido numa crise de dívida pública, e, aliás, como a minha resposta a primeira pergunta demonstrou, essas crises são frequentemente, acima de tudo, crises de confiança. E, portanto, uma vez mais, podemos discutir alguns dos detalhes, se [....] algumas políticas podiam ter sido diferentes ou não, a atitude do ir para além da troika é frequentemente criticada por ser "desumana", mas penso que foi bastante importante para restaurar a confiança dos mercados em Portugal. 

   Sem essa confiança dos mercados, Portugal não conseguia aceder a esses mesmos mercados e, portanto, não havia outra alternativa senão a austeridade. Porque se o governo não consegue se financiar e não consegue pedir emprestado, então o governo tem de deixar de gastar. [...] Se não tivesse havido esse esforço para restaurar a confiança nas finanças públicas portuguesas, eu acho que teria sido uma austeridade muito pior do que aquela que nós vimos. [...] Penso que em Portugal, na cabeça das pessoas, austeridade é igual a reformas estruturais, e isso não é necessariamente o caso. Austeridade é uma posição de política orçamental em que o governo gasta menos do que aquilo que se calhar deveria estar a gastar, e mesmo assim, austeridade não é uma coisa que seja muito fácil de medir, não é um termo muito objetivo, é um termo um bocado abstrato, e acho que diferentes pessoas querem dizer coisas diferentes com "austeridade".

   Aquilo que eu acho que se perdeu em oportunidades neste governo foi a nível de reformas estruturais, e de  algumas reformas da administração pública, reformas do mercado do trabalho principalmente. Já não me lembro quem é que disse, houve um economista famoso que disse que "as crises são terríveis no momento que são desperdiçadas". [...] Foi um excelente, se calhar o melhor, momento da história recente de Portugal para levar a cabo uma série de reformas estruturais. [...] Obviamente são reformas complicadas e determinados segmentos da sociedade vão perder e outros vão ganhar, portanto, politicamente podem não ser politicas muito palatáveis, mas isto não é necessariamente austeridade.


| Q8: Considera ser um momento transformador na História de Portugal?

| M.F.C: Eu acho que não, afinal de contas Portugal já passou por outras crises semelhantes e hoje em dia nem se fala muito delas. Isto foi o quê? Acho que a terceira vez que o FMI veio a Portugal em democracia, portanto, não. No final dos anos 70 e início dos 80, Portugal passou por situações semelhantes. Se calhar as recessões não foram tão prolongadas, mas nesse aspeto eu acho que não são tão importantes. [...] Isto obviamente foi um evento muito importante, principalmente, penso, para a nossa geração, as mais novas que passaram por isto e que hoje as oportunidades, para o melhor e para o pior, foram afetadas por toda esta situação. 

   Mas, se me perguntarem se daqui há 100 anos vai se estar a falar disto nas aulas de história, eu provavelmente diria que não.


| Q9: Como descreve o impacto da troika em Portugal em três palavras?

| M.F.C: ... Diria que foi dura, de certa forma necessária e que foi bastante importante para restaurar a confiança dos mercados em Portugal.


Joana Matos
Concurso EUStory 2021 - XIV Edição

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